Professor Kabengele Munanga da USP em entrevista

Durante muito tempo ausentes das prateleiras de bibliotecas e das salas de aula os livros que levantam questões sobre o negro brasileiro sem reduzi-lo a objecto começam a aparecer. Se antes a temática não representava um mercado potencial para as editoras, a nova legislação já dá mostras de avanços concretos.. Em vigor desde Janeiro de 2003, a nova lei federal torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todas as escolas de ensino. O livro Para entender o negro no Brasil de hoje: história, realidades, problemas e caminhos foi escrito pelo antropólogo Kabengele Munanga, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, e por Nilma Lino Gomes, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. A obra está a ser usada nos cursos de graduação de outras universidades. Nesta entrevista, o professor Kabengele, que nasceu na República Democrática do Congo e lecciona na USP desde 1980, conversou sobre a educação no Brasil, defendeu o sistema de quotas e apresentou algumas ideias da sua obra.


“Política de quotas desencadearia ascensão económica dos negros”
Marana Borges
A aprovação da lei 10.639 ajuda a desconstruir o mito da democracia racial no Brasil?
A lei vem provar que o Brasil não era uma democracia racial, pois levou 115 anos para introduzir no ensino o estudo da matriz cultural africana. E ela não caiu do céu, mas é o resultado da luta do movimento social negro.. A nova lei tem tudo de positivo. Porém, é preciso que ela seja efectivamente implementada e que seja definido exactamente o conteúdo a ser ministrado. A África é um continente de 56 países e ilhas. A lei não disse que África e Brasil ensinar. Mas se não fosse a lei, ninguém se mobilizaria.


Como é o ensino da cultura afro-brasileira e africana na escola?

A África que nós conhecemos é a do Tarzan, Simba Safári, Sida, fome, guerras, das tribos. Será que a África é só isso? Já viu algum livro didáctico mostrar que a África é o berço da humanidade, que as maiores civilizações se desenvolveram lá, que a civilização egípcia era negra? Nunca se viu na historiografia oficial, nos livros didácticos, os impérios e reinos africanos. A África é simplesmente tida como tribo. É isso o que a lei pretende corrigir. Além de introduzir a história da África no currículo, é uma nova história que será ensinada, em que a identidade africana e dos afro-descendentes é apresentada de maneira positiva.


O senhor explica que foi após a conferência de Berlim (1885) que se deu a passagem de uma imagem positiva do povo e continente africanos para uma negativa.

Os primeiros viajantes em África, como os árabes, deixavam documentos sinceros sobre aquela sociedade, relatando as formas de organização política, expressão artística etc. Quando começou a colonização da África, essas memórias foram apagadas. Para se justificar a dominação através do discurso da Missão Civilizadora, foi preciso negar os atributos daquelas sociedades. Os livros escritos depois da colonização não trazem mais uma África autêntica, mas estereotipada. É essa África que foi ensinada na historiografia oficial. Isso também tenta justificar a posição do negro na sociedade brasileira. O discurso é também um dispositivo de dominação, é ele que legitima a situação do “outro”, o nomeia. Não basta força militar, é preciso que o poder seja legitimado pelo discurso.

O senhor vê resquícios dos princípios da Missão Civilizadora em alguns trabalhos assistencialistas de organiza­ções não-governamentais, que pretendem salvar o negro e pobre (já que no Brasil pobreza tem cor?
Seria uma injustiça dizer isso, pois não colaboro com ONG e conheço muito pouco sobre elas. Parto do princípio de que muitas delas perceberam que o Estado não estava a cumprir as suas obrigações. Nesse sentido, muitas organizações contribuíram com os países africanos, fazendo o que o governo não fazia no sistema de saúde e educação. Não
creio que eles estavam a fazer isso com o espírito da Missão Colonizadora. Como membros da sociedade e conscientes das injustiças cometidas contra essas sociedades, eles acham que podem fazer algo, não cruzam os braços.

Qual a importância da Frente Negra Brasileira e do Teatro Experimental do Negro para a educação e inclusão dos negros?
Foram tentativas. A Frente Negra Brasileira foi um movimento social fundado por uma elite negra dos anos 30. Ela foi a primeira a denunciar o mito da democracia racial, e só depois a academia foi estudá-lo.

Aqueles negros colocaram o mesmo problema que hoje estamos a colocar: a educação é um dos caminhos para poder integrar o negro no mercado de trabalho, no sistema de poder. A diferença é que os movimentos negros actuais, que surgiram em 1975, além de reivindicar a escola também querem que ela reconheça a sua identidade, ensine a história e cultura dos negros africanos. Movimentos negros anteriores, como no caso específico da Frente Negra, queriam simplesmente se integrar na cultura dominante. Porém, ambos os movimentos lutam para que o negro faça parte do sistema educacional.

Quantos negros há na Universidade de São Paulo? Como surgiu o debate sobre quotas?
Chegou um momento em que os movimentos sociais negros descobriram que o único caminho para garantir o acesso do negro à educação superior de boa qualidade, era através de uma política pública, uma medida obrigatória. E se isso não for feito, se contar apenas com a boa vontade do cidadão, nada vai acontecer. É claro que o sistema de cotas
é uma experiência que já foi vivida por outros países do mundo. É o caso, por exemplo, dos EUA, onde os negros são cerca de 12% da população e, a partir das lutas pelos direitos cívicos nos anos 60, uma parcela deles conquistou uma grande mobilidade social e económica. Há uma classe média negra bastante notável, com intelectuais nas grandes
universidades, médicos em grandes hospitais, engenheiros até na NASA. A experiência deles deu certo. Na Índia o governo também adoptou a política das cotas para as castas dos “intocáveis” desde 1950, três anos após a independência do país. Essa política já existe em outros países. Porque é que no Brasil ela tem um tom de novidade, como se não houvesse outras experiências noutros lugares? Justamente porque não há vontade política para mudar as coisas. Quantas coisas o Brasil copia dos Estados Unidos? Modelo económico, ciência e tecnologia.. . Não copiam as cotas porque não querem. Muitos brasileiros ainda não acreditam na existência do racismo no Brasil. Eles acham que a questão é simplesmente económica, de classes, ou uma questão social. Como se o machismo e a homofobia não fossem uma questão social. Todas as questões que tocam a vida do colectivo são sociais, mas o social não é algo abstracto, tem especificidade, tem endereço, sexo, religião, cor, idade, classe social.
Muitos acham que o caminho para corrigir as desigualdades sociais seria uma política universalista, baseada na melhoria da escola pública, o que tornaria todos os cidadãos brasileiros capazes de competir. Mas isso é um discurso para manter o status quo, porque enquanto se diz isso nada é feito. Não se esqueça que quando as escolas públicas no Brasil eram boas, os negros e pobres não tiveram acesso a ela. Havia uniformes caros e outros mecanismos que os ­excluíam. O pobre estudava nas escolas particulares, como foi o caso de José Corrêa Leite, um dos fundadores da Frente Negra Brasileira. Então não adianta dizer que basta melhorar o nível das escolas públicas. Mesmo porque isso significaria acabar com a clientela das escolas particulares, que possuem um forte lobby e não tem nenhum interesse em ver escolas públicas de boa qualidade. Se o governo conseguisse fazer isso, entenda-se melhorar a escola pública, seria óptimo. Mas a partir do momento em que os pobres e os ricos mandarem seus filhos para as escolas públicas, haverá outras formas de excluir o negro. O problema de cotas será colocado novamente.

Então haveria um círculo vicioso?
Sim, mas há uma saída. Um aluno que entra pelas cotas e se forma, vai encontrar as mesmas barreiras do preconceito no mercado de trabalho. Mas a situação dele será diferente, pois ele terá sólida formação, que vai lhe abrir muitas portas. Ele certamente passará num concurso público. E quando ele encontrar alguma porta fechada, saberá lutar
pelos seus direitos, ou poderá ter emprego e dinheiro para contratar um advogado. É uma grande diferença. É como dizer que a sociedade deixou de ser machista. Não é verdade. A mulher está a ocupar os espaços públicos porque ela lutou e se capacitou. A competência abre muitas portas, embora muitas outras estejam fechadas. Como essa mulher também não tinha uma formação política, achava que seu lugar era na cozinha e
na maternidade.

O senhor se refere às mulheres brancas?
Sim, pois as mulheres negras são as maiores vítimas da discriminação. São duplamente discriminadas, enquanto mulheres e enquanto negras. Mas o acesso à educação propicia melhor consciencialização e capacidade de lutar pelos seus direitos. Além do mais, a educação tem um factor de multiplicação. Um jovem que foi para a escola, passou por uma boa universidade, tem consciência dos problemas da sociedade, não deixará seus filhos passarem pelo mesmo caminho. O acesso que ele tem a uma certa mobilidade social e ascensão económica faz com que seus filhos possam estudar numa boa escola. E ele pode também se tornar aquele referencial que o negro não tem.

O “programa universidade para todos” teria os mesmos resultados que as cotas nas universidades púbicas, no sentido de propiciar a consciencialização política e ascensão económica de pobres e negros?
Creio que sim. Não sei como as escolas particulares trabalham as questões raciais, mas o aluno que entra pelo “programa universidade para todos” informa-se sobre o programa e sabe porque está a ir na universidade. Há faculdades particulares de qualidade. E todas têm o efeito multiplicador, tanto na educação dos filhos como na futura ascensão económica deles. A expansão do ensino público leva tempo. Enquanto isso os jovens que terminaram o Ensino Médio não podem estudar? Graças ao “programa universidade para todos” hoje há mais de 40 mil afro-descendentes que entraram nessas escolas particulares. Isso é um ganho.

No seu livro, como em outras obras, o senhor desconstrói o mito de um sistema esclavagista africano que justificaria e legitimaria as formas de escravidão que deram origem aos tráficos. Qual era o conceito de “escravo” em África antes dos tráficos liderados por europeus e árabes?
Em primeiro lugar, a existência do chamado “escravo” não é razão para aceitar a escravidão. Em qualquer circunstância, a escravidão é uma instituição desumanizante e deve ser condenada. O homem nasce livre até que alguém o escravize. Portanto, o próprio conceito está errado. O correcto é “escravizado”, não “escravo”. Não há uma categoria de escravo natural. Porém, esse conceito já está enraizado na literatura. Em segundo lugar, o conceito de “escravo” vem de outra visão do mundo, diferente da africana. Como nas outras sociedades, em África existia a categoria de cativos, que eram prisioneiros de guerra ou pessoas que cometiam algum delito na sociedade e eram levadas por outros grupos étnicos. Os homens trabalhavam como serventes dos reis, príncipes e guerreiros, enquanto as mulheres se tornavam esposas e reprodutoras das famílias reais. Todos os filhos dos cativos eram livres. Nos outros casos, famílias penhoravam algum parente quando havia grandes calamidades. Esses parentes poderiam trabalhar nas outras famílias temporariamente ou para sempre, caso a família original não tivesse condições de adquiri-lo de volta. Em hipótese alguma havia um escravismo como sistema de produção, pois não era uma sociedade de acumulação de capital, mas de subsistência. Essa categoria de cativo africano foi traduzida como escravo. Mas não o é, pois o sistema escravista pressupõe que os escravizados sejam bem mais numerosos que os senhores. No Brasil, até século XVII, os negros eram cerca de 70% da população. Em compensação, algumas sociedades africanas não queriam nem guardar o cativo, achavam que ele não servia para nada. Por isso alguns eram enterrados vivos com reis, para servi-lo no outro mundo. Muitos reis e príncipes colaboraram com o tráfico negreiro para outros continentes, capturando negros de outros grupos étnicos para vendê-los como escravizados. Mas este facto também não justifica a escravidão. Quando se fala de escravidão na África só se pensa no tráfico liderado pelos europeus.

E a responsabilidade árabe com a escravidão através das rotas oriental e transaariana?
Não se fala sobre isso porque a escravidão liderada pelos árabes é anterior à europeia. Começou no século VI e terminou no século XX. Os escravizados foram deportados para os países do Oriente Médio. Talvez não se fale muito porque não se vê tantos negros mestiços nos países árabes como se vê nas Américas. Isso porque era frequente a castração dos negros, muitos trabalhavam como eunucos. Apesar de as mulheres servirem como concubinas nos haréns, a taxa de mortalidade dos negros era alta. Inclusive quando as pessoas dizem que o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão, não é verdade. A Arábia Saudita a aboliu em 1962. É uma história que ninguém conhece.

Perfil
Kabengele Munanga nasceu na República Democrática do Congo, antigo Zaire, no dia 19 de Novembro de 1942. Foi o primeiro antropólogo do seu país, tendo saído pela primeira vez para fazer mestrado na Bélgica. Chegou ao Brasil por convite de um colega, terminado o seu doutorado, retornou ao Congo. Em 1980 veio para o Brasil, para assumir a cadeira de Antropologia na Universidade do Rio Grande do Norte. Depois de um ano muda-se definitivamente para São Paulo, tomando como sua casa a Universidade de São Paulo. Tem cinco filhos, dois belgas, dois do congo e um brasileiro.
“ O meu nome, pronunciado na minha língua materna, é Kabengele Munanga. Eu nasci em Bakwa Kalonji, no antigo Zaire, actualmente República Democrática do Congo, no dia 19 de novembro de 1942. O nome do meu pai é Ilunga Kalama. O nascimento dele eu não sei, porque quando meu pai faleceu, eu era criança de 6 meses. Naquela época, em plena colonização, não havia cartório, então não tenho registo. Minha mãe é Mwanza Wa Biaya, nascida na cidade Bakua Mulumba, no antigo Zaire, não conheço a data dela de nascimento, mas meu irmão disse que ela teria falecido com uma idade estimada de 100 anos”.
Vida Cultural/JA
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Vivo Africa

Fonte: Rede 3Setor

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